segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Manual de Aventuras Domésticas

Se você fechar esse vídeo pornô que você deve estar assistindo e parar pra pensar um pouco a respeito do século em que vivemos, chegará à mesma conclusão que eu atingi cinco segundos atrás:
Vivemos num mundo muito seguro, e isso tornou nossa existência muito monótona.
Pense comigo um pouco: cintos de segurança, backups, vacinas, airbags, botes salva-vidas, capacetes, seguros de vida, função “Desfazer” do Word, continues infinitos em Mario World… Temos ao nosso dispor incontáveis mecanismos de proteção que, ao mesmo tempo que nos dão segurança, acabam roubando todo aquele friozinho na barriga, a sensação de perigo, o próprio gostinho de viver. Que tipo de emoção se pode ter num mundo onde você pode comprar uma pílula de emergência minutos após ter estourado uma camisinha?!

Alguns indivíduos mais ousados, não conformados com essa sociedade medrosa que nos tornamos, adotam estilos e atividades ditos “extremas”. Mal sabem eles que até mesmo os esportes radicais foram infectados por essa covardia contemporânea:
• Em rafting, se usa colete salva-vidas;
• Skatistas usam capacete;
• A mochila do paraquedista tem um paraquedas de emergência.
Que porra é essa? Se arriscar sendo cuidadoso? Isso não faz o menor sentido. Ou você se preocupa com sua segurança, ou você pratica essas atividades. Tentar ambos prova não apenas que você tem tanto medo como o resto das pessoas, mas também que você tem medo de admitir esse medo, e é por isso que sai fazendo essas maluquices – pra que ninguém saiba que você é um puta dum cagão.
Tá, tudo bem, talvez essa cultura de auto-preservação tenha salvo algumas centenas de milhares de mortes trágicas, dolorosas e prematuras. Mas gente, e a adrenalina? E o senso de aventura?! Milhões de mortes por ano me parece um preço justo a se pagar por um friozinho na barriga de vez em quando.
Não chorem ainda. Essa situação pode ser revertida. Basta seguir meu simples Manual de Aventuras Domésticas, que pode ser praticado por qualquer pessoa, em qualquer idade, sem necessidade de esperar meia hora após ter tido uma refeição.

1) Fazer pipoca sem a tampa
Imagine a cena: é um sábado à tarde, e há um filme na TV a cabo que por algum milagre não é uma merda repulsiva como os filmes de sábado à tarde geralmente são. Todo serelepe, você decide que a experiência cinematográfica não pode ser completa sem uma bacia fumegante de pipoca quentinha no seu colo, recém saída da pipoqueira. Você vai à cozinha, simultaneamente coçando o ovo esquerdo – não porque estava coçando, você coçou de graça mesmo – e joga os grãos de milho na panelona. Aí, de MEDROSO DE MERDA QUE VOCÊ É, você põe a tampa em cima de tudo, senta ao lado do fogão e começa a morder uma unha do pé pra passar o tempo.
Aí que está o seu erro. Você acabou de sepultar toda a adrenalina que a confecção de uma rodada de pipoca envolve. Já pensou? Um grão pode ou não voar por uma brecha entre a panela e a tampa, quando você a levanta pra ver se tá tudo no ponto, e pode ou não acertar você no meio do olho! Praticamente uma roleta russa culinária.
Os praticantes mais extremos desse esporte não apenas jogam fora a tampa, mas comumente mantém o rosto centímetros acima da panela, só pra ver se conseguem tirá-lo na hora H. Como em outras técnicas que envolvem tirar uma parte do corpo na hora H, não preciso dizer que isso nem sempre dá os resultados esperados.
Mas ao menos você não será um covarde de merda.

2) Preencha cruzadinhas com caneta
Poucos sabem, mas cruzadinhas podem ser uma das atividades mais extenuantes e radicais que um ser humano pode se submeter. Basta remover o lápis, jogar a borracha fora e puxar uma caneta da gaveta. A excitação será palpável quando você se deparar com o item “Capital da Iuguslávia“, X letras, vertical, e não houver uma forma de verificar o Google no momento.
O que fazer? Deixar em branco? Fechar a revistinha e perguntar a alguém menos burro? ESCREVER QUALQUER COISA COM LÁPIS E DEPOIS APAGAR?
Mas claro que não. Escrever com lápis – se garantindo na segurança que uma borracha oferece – é pra gente frouxa e que está acostumada a sempre sair errando tudo. Fazer cruzadinhas com lápis é não apenas mais um dos milhares de sistema de segurança que nos protegem como bebêzinhos indefesos o tempo todo, mas também um atestado de ignorância.
Passe a caneta (de preferência vermelha, pra que alguém que veja as cruzadinhas pense depois “caralho, esse cara era realmente um aventureiro!“) enquanto repete para si mesmo “ah, foda-se“. Muito em breve você saberá se acertou (o que fará você soltar um longo suspiro de alívio, confie em mim) ou não. E nesse caso, FODEU.
E até descobrir isso, o suor descerá continuamente de sua testa.

3) Morda o sorvete com os dentes da frente 

O corpo humano é composto por vários órgãos e membros, e quase todos trabalham incansavelmente para tornar nossa existência mais dolorosa. Canelas, amídalas, apêndices, molares… parece que certas partes do nosso corpo foram colocadas lá apenas causar dor e encheção de saco. Como se não fosse só isso, até mesmo as partes “úteis” causam uma dor impressionante por motivo nenhum.
Os dentes, por exemplo. Sozinhos eles são apenas mais uma engranagem da complexa máquina que é o corpo humano. Com eles você morde uma rapadura, segura o celular enquanto amarra os cadarços, arranca o piercing do mamilo de alguém… Ou seja, nossos dentes são uma excelente ferramenta.
Mas experimente combiná-los com sorvete. E não qualquer dente, mas especialmente os dentes da frente. Há terminações nervosas naquela área que potencialmente tornam o ato de comer sorvete tão doloroso quanto levar um choque de quarenta milhões de volts após ter perdido o braço numa mina terrestre que um soldado iraquiano pôs no seu caminho após estuprar sua mãe com um taco de baseball em chamas.
Alguns, entretanto, desenvolveram técnicas inconscientes e conseguem desviar da dor lacinante que vem após morder um gélido picolé com os incisivos. Alguns não. A que grupo você pertence?
Dê uma dentada naquele Frutilli e descubra, seu medroso!

4) Vá ao banheiro de olhos fechados

Só aquele que já passou pela situação de ter estar trancado num banheiro em falta de papel higiênico sabe o quanto isso é desesperador. Acho que a única coisa pior que isso seria estar trancado num banheiro sem papel higiênico num prédio em chamas, minutos após ter sido demitido e não saber como pagará a prestação do carro no mês que vem. Mas como a maioria de vocês não tem carros, pelo menos dessa vocês escaparam.
Claro que ninguém quer se ver numa situação como essa. Por isso é lugar comum verificar – antes mesmo de arriar as calças – se há um volume satisfatório de papel higiênico naquele buraquinho da parede, justamente pra evitar a desagradável surpresa de estender o braço em direção ao rolo e sentir apenas o papelão.
E mais uma vez as conveniências e medos da nossa sociedade contemporânea estragam o que poderia ser uma aventura de proporções inimagináveis.
Os riscos nessa atividade são maiores que qualquer outro. Uma coisa é despencar de um avião a cinco mil metros de altura, cair de cabeça e ter uma morte instantânea e indolor. Outra bem diferente é despejar a feijoada de ontem na privada de um conhecido durante uma festa, dar de cara com a falta de papel higiênico e ter que contemplar a possibilidade do uso da cueca para o fim higiênico. Já viram o filme Saw, em que os malucos têm a opção de cortar os próprios pés para escapar do assassino? A solução está lá, na sua frente, mas você simplesmente não consegue tomar a decisão. E além disso, o tempo vai passando, lentamente mas inexoravelmente, e em breve perguntarão por que você ainda está no banheiro.
O que eu estou querendo dizer aqui é que verificar a existência do papel antes de liberar o esfíncter é coisa de gente FROUXA. Feche os olhos, feche a porta (e o nariz, dependendo do que você comeu ontem), e vá na fé.

E é isso. Adotem essas simples atividades radicais e injetem alguma emoção em suas vidinhas hermeticamente fechadas e protegidas 24 horas por dia, seus molengas!

Hm, mó vontade de fazer cruzadinhas comendo pipoca agora. Cadê minha BIC?

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Brincadeiras de criança

Além de curar cegos, andar por aí com prostitutas e definir o calendário da civilização ocidental, Jesus celebremente disse que o reino de Deus pertence às crianças.
A história aparece de novo no livro de Marcos, aliás. Inclusive, toda a idéia de que um cristão precisa “nascer de novo” faz alusão à idéia de que Jesus favorece a galerinha mais jovem.
Por muitos séculos, teólogos interpretaram a frase de Jesus da seguinte forma: o Reino de Deus pertence àqueles que forem puros e inocentes como criancinhas.
Entretanto, tenho outra teoria: Jesus sabia que criancinhas são malucas, com hábitos que beiram tendências suicidas, e por isso acabam indo ao Céu primeiro.
Ué, você tá duvidando? Você não lembra que brincava de…
Carrinho de rolimã


Deixa eu admitir logo: eu tenho muita saudade dos carrinhos de rolimã. Ou “rolemã”, sei lá.
A emoção de descer uma ladeira em alta velocidade (ok, não tão alta assim) com freios inexistentes ou ineficientes, dividindo a rua com carros que poderiam te esmagar como um rolo compressor. A única coisa mais incrível que a sensação de pilotar um carrinho de rolimã era o fato de que nossos pais nos deixavam fazer isso.
O carrinho de rolimã era um resultado do cálculo (três pedaços de madeira) + (quatro rolamentos) — (qualquer instinto de auto-preservação). Uma vez de posse de um deles, a gente saia caçando as melhores ladeiras do bairro. Se haviam dois ou mais moleques com carrinhos, a idéia era disputar corrida.
E como em qualquer tipo de automobilismo, os espetaculares acidentes são o que há de mais emocionante. Diz-se que os gringos só assistem Nascar por causa dos acidentes, aliás.
Eu tenho até hoje uma cicatriz no tornozelo esquerdo por causa de um carrinho de rolimã. Sabe o que acontece num carrinho de rolimã se você dá uma curva muito fechada indo em alta velocidade?
A mesma coisa que acontece com qualquer outro veículo. Este erro me mandou voando pelos ares como uma boneca de pano, me ralei todo quando o chão correu pra me acudir.
E quando alguém inventava de fazer uma rampa pros carrinhos? Como eles jamais atingiam velocidade suficiente para decolagem, o que acontecia era a) a tábua quebrava e enviava centenas de farpas na delicada cútis e olhos da criançada ou b) o carrinho chegava à beirada da rampa e em seguida despencava ao chão, fraturando cóccixes no processo.

Lutinha
Nós gamers somos extremamente sensíveis à acusação de que videogames provocam violência no mundo real. Muitos anos tendo que lidar com essa caça-às-bruxas nos fizeram desenvolver argumentos afiados pra defender nosso hobby.
Até parece que nos esquecemos que há muitos anos atrás, em pé em cima da cama dos pais, nos engafinhamos com irmãos mais novos após berrar um alto e inspirado “FIIIGHT!”
Uso MK neste exemplo mas isso é apenas porque era nosso game de luta favorito na época. Qualquer jogo de luta era reproduzível em cima da cama dos pais, o equivalente infantil a um tatame gigante.
Numa dessas brincadeiras, eu caí da cama de cabeça no chão. Apaguei, e a próxima memória que tenho é dos meus pais me trazendo pra casa de volta do hospital — eu, encolhido no colo da minha mãe no banco da frente do carro, enquanto ela levantava o braço pra erguer a garrafinha do soro intravenoso.
Outra coisa que muito me impressionava eram aqueles incríveis saltos mortais que os lutadores do jogo davam. Obviamente tentei reproduzir a parada na cama dos pais, e arrebentei meu pé num baú que eles mantinham na cabeceira da cama.
Em outra dessas brincadeiras, uma porrada na cara do meu irmão com o travesseiro arrancou um dente dele.
O legal é que víamos a aparição de sangue nas brincadeiras como um sinal de que a imitação do jogo estava perfeita.
Bombas


Essas bombas têm diversos nomes ao redor do Brasil. Em SP são chamados de “morteiros”, no RJ, essa cambada de racistas, a bomba se chama “cabeção de nego”. No Maranhão, isso se chama “bomba de murrão”. Em Minas chama-se as bombas de “trem que isprode, sô”.
Já no meu saudoso Paraná chamamos estas bombas de “rasga-lata”, porque este é o nome correto delas.
A rasga-lata consista num explosivo caseiro, vendido em mercearias de esquina por valores perigosamente acessíveis a crianças. E evidentemente, não havia nenhuma restrição etária para a compra das bombas. Eu devia ter uns 10 anos quando comprei minha primeira rasga-lata.
O maior pretexto pra utilização desses aparatos explosivos era a Copa do Mundo, mas no bairro da minha avó — o único bairro que frequentei constantemente por toda minha infância; minha família se mudava muito — a criançada brincava dessas coisas quase toda noite.
O nome do troço era uma sugestão de uso. A molecada comprava essas merdas e saia vasculhando o lixo do bairro inteiro procurando latas metálicas para explodir. Quando não conseguiam achar latas, servia qualquer outra coisa — garrafas plásticas de refrigerante, canos de PVC, e em uma ocasião um moleque particularmente suicida jogou uma rasga-lata dentro de um pote de vidro.
Eu, que sempre fui meio piromaníaco, adorava as rasga-lata. Quando meus primos iam lá em casa a gente juntava toda a grana, comprava uma porrada de bombas, e o mundo então adquiria outra aparência pra nós: tudo que víamos era explodível.
Como eu cheguei a adolescência com ambas as mãos intactas é um mistério.
E isso, novamente, com pleno conhecimento e consentimento paterno. Era outro mundo mesmo.


Vassouras são como espadas


Imagine a cena acima, exceto que sem qualquer instrumento de proteção, e com cabos de vassoura (que são muito maiores e mais pesados que floretes, portanto causam bem mais dano). Esses eram eu e meu primo.
Sei lá qual foi o filme ou videogame que nos inspirou a fazer isso — e em se tratando de brincadeiras de luta de moleque, pode ter certeza que foi um dos dois que nos deu a idéia –, mas toda vez que eu ia à casa dos meus primos a gente roubava as vassouras da empregada, removia aquela parte das cerdas, e tentava coreografar elaboradas cenas de luta na garagem.
Os resultados eram previsíveis: vigorosas vassouradas na cabeça, braços e ou pior ainda: nos dedos. O que acontecia é que… bem, permitam-me explicar com uma ilustração.


Esta é uma espada. Você deve ter notado que quase toda espada tem um curioso elemento de design ali perto do cabo. Aquela pecinha ali se chama crossguard.
Sabe qual a função dela? Impedir que a lâmina inimiga deslize até a sua mão, decepando seus dedos.
Agora olhe pra uma vassoura comum. Você perceberá uma notável ausência de qualquer tipo de crossguard.
Ou seja, uma tarde na casa dos meus primos significava levar trocentas vassouradas nos dedos. O moleque vinha com sede de sangue, travava a vassoura dele na sua, mas aí o ângulo da sua vassoura praticamente convidava a dele a percorrer toda a sua extensão, parando finalmente quando acertava seus dedinhos em cheio.
E meu irmão, uma vassourada no dedo já doi pra caralho, imagina levar três ou quatro seguidas no mesmo dígito. Não sei como não estou digitando este texto com a língua, isso é um milagre.

Pipa com cerol

Caso você seja algum tipo de gringo maluco que achou este site e jogou no Google Translate (Oi Poly!), deixa eu explicar: “cerol” é um produto caseiro aplicado na linha da sua pipa. A finalidade disto é cortar a pipa dos outros, porque afinal de contas qual a graça de empinar uma pipa sem ter a opção de sacanear alguém?
Cerol é fabricado da seguinte forma:  primeiro você rouba copos da cozinha. Depois, arruma um pote de cola. Tritura-se o vidro até que esteja praticamente inalável (nossa senhora imagina aí o horror que deve ser cheirar uma carreira de vidro em pó), aí mistura com a cola e aí está. Basta aplicar a parada na linha da pipa, esperar secar, e pronto. Você tem uma lâmina virtualmente invisível à distância e enrolável.
Não bastassem os dedos cortados no processo de moer o vidro e aplica-lo à linha, o real terror era o risco que o cerol trazia a ciclistas ou motoqueiros. Lembra que eu falei que a linha é virtualmente invisível? E que após a aplicação do cerol, é preciso coloca-la pra secar?
Não sei se os moleques eram incrivelmente retardados ou psicopatas em treinamento, mas o método que muitos elegiam pra secagem da linha era amarrando em postes, na altura do pescoço, e às vezes conectando postes em lados opostos da rua.
Ou seja: volta e meia alguém morria DEGOLADO porque não viu a linha cortante no meio da rua.
A corrida armamentista iniciada pelo uso do cerol fez com que alguns moleques mais engenhosos passassem a usar fios de cobre pras suas pipas, que não podiam ser cortados pelo cerol — mas que eram perfeitamente condutores, e ceifaram algumas vidas quando os fios tocavam nas linhas elétricas em postes.
Ahh, cê tá me achando muito sensível e bichinha, né? “Aff que baitolagem Kid, todo mundo brincava com cerol, não era esse horror todo“. Sugiro que você não procure “cerol” no Google imagens então. A parada causava estragos tão absurdos que é difícil crer que era produzido por um bando de moleque de 11 anos com um tubo de cola Polar e um copo velho.
Nossa geração desafiou Darwin, meus amigos.